domingo, 20 de outubro de 2019

Coringa (Joker; 2019) - A bela transformação do "cinema de super-herói" através de uma profunda e violenta crítica social


 Faz um bom tempo que não escrevo por aqui, o que eu considero mesmo uma pena, mas posso afirmar que tive meus motivos, nos mais diferentes contextos. Mas hoje resolvi retornar porque, depois de alguns dias após ter assistido ao 'Coringa' (2019), me senti compelido a escrever uma análise do mesmo, da forma mais crítica possível diante das inúmeras observações propostas pelo filme acerca da nossa sociedade atual, e talvez com alguns spoilers, mas tentarei ao máximo manter-me controlado (haha). E vamos lá, como de costume, leia tudo após o clique!




 Inicio este texto informando um pouco sobre o meu preconceito diante da obra desde que a mesma havia sido anunciada. Por mais que eu goste da atuação do Joaquin Phoenix, eu não acreditava muito nesta aposta da DC para um filme solo de um vilão tão complexo como o Coringa. Além do mais, a DC no cinema é uma incógnita eterna, entre muitos erros e poucos acertos, então desde o início era uma aposta muito arriscada, principalmente pela promessa de um filme altamente adulto. Mas enfim, Gotham City é dominada pelas mentes mais psicóticas e perturbadas que podem existir num mundo fictício, mas o Coringa realmente é a cereja do bolo. Podemos ver isso até na franquia de jogos do Batman: 'Arkham', onde os primeiros títulos estrelaram um Coringa altamente palpável e muito bem construído. Então, diante disto, e outras coisas, eu realmente não acreditava muito no longa, mas eu agradeço, mesmo, por estar errado desta vez. Pois 'Coringa' é uma obra de arte, sem tirar nem por.

 O filme em si nos lança numa jornada, eu diria que macabra, sobre o brutal peso que a sociedade nos impõe e como algumas pessoas (no caso o personagem Arthur Fleck) lidam com toda esta loucura estruturada do mundo real (claro que tudo se passa na fictícia cidade de Gotham, porém toda a crítica social é mais do que válida para o nosso contexto, e é exatamente nisso que o filme acerta demais). Fleck, um comediante praticamente falido e com sonhos frustrados, vive numa realidade extremamente injusta e suja de uma Gotham City praticamente à beira do caos em várias vertentes, principalmente a econômica. A sua degradação mental vai elevando-se a cada passo e, logicamente, veremos o surgimento do icônico Coringa num chocante ápice. É essa passagem rumo à loucura que faz o filme ser realmente genial. Para a tratativa acerca de um personagem fictício, eu posso dizer que nunca presenciei uma jornada tão crível, interessante, sufocante e, ironicamente, realista como a vista aqui.


 Todos os personagens apresentados na trama (original, pois Coringa se utiliza do terreno já existente e de personagens já conhecidos, mas cria uma origem altamente nova), inclusive a magnífica inserção de conhecidas faces das HQs, são belamente construídos e tornam-se muito interessantes, principalmente os coadjuvantes. Queremos saber mais e mais sobre eles - destaco aqui a mãe do Arthur (interpretada pela ótima Frances Conroy) e o apresentador e comediante Murray (feito pelo eterno cara-de-cafajeste Robert De Niro). O filme pode ser classificado diante de muitos gêneros, pois passa pelo suspense altamente psicológico, permeia pelo forte drama e nos choca com um horror brutal. Com cenas muito fortes e bem explícitas, Coringa não é um filme para qualquer um e, sim, é adulto; além de sempre cruzar a linha do que pode ser considerado psicologicamente danoso, mas o meu eterno conselho é: uma consciência crítica em dia e uma boa apreciação artística na bagagem ao entrar na sala de cinema irá te salvar de qualquer tipo de comentário apelativo de que o filme pode incitar a violência ou desencadear a loucura. Isso é muito fake news, desculpe a sinceridade. Temos aqui uma ficção altamente válida como crítica social. Ponto. Mas críticas fervorosas do tipo já ocorreram como outros filmes: 'Laranja Mecânica' por exemplo, mas eu acredito que isso o ajudou mais do que prejudicou na época. Polêmica sempre é bom, sejamos sinceros, mesmo quando a mesma é prejudicial.

 Retomando um pouco a questão psicológica tratada no filme acerca do personagem principal, afinal o filme foca a todo momento na construção de caráter do mesmo, eu posso dizer que, mesmo achando que a obra não está aí para incitar violência ou comportamentos suicidas, por exemplo, é altamente válido ser cauteloso se a sua persona encontra-se frágil e, mais importante, passando por algum processo depressivo, pois a trama (como qualquer outra que trate de temas pertinentes e até tabus) pode servir como algum tipo de gatilho, apesar de eu achar isso aqui muito radical, mas fica a dica. Certo?


 O que eu achei deveras interessante mesmo na obra foi, realmente, a construção do personagem, como já falei anteriormente. E, apesar de não ser conhecedor de certos assuntos diante da Psicologia, posso dizer que ver a colocação da ideia de que um psicopata pode vir a surgir, a ser moldado, por um contexto altamente danoso, ou melhor, fabricado pela sociedade, é mais do que um tapa na cara. Não irei permear pelos pensadores clássicos da Filosofia, e nem questionar sobre se o ser realmente nasce bom ou ruim, mas eu conheço a psicopatia como doença/condição inata do indivíduo desde o nascimento, mas vê-la sendo construída diante dos muitos traumas impostos pela vida para vir a se mostrar na idade adulta é algo bem chocante, e o filme nos joga esse fato da forma mais clara e realista possível, tornando a ideia crível e válida. O surgimento do Coringa, ou seja, a transformação do Arthur Fleck no Coringa, é algo incrível de se ver, e só por isso já vale o ingresso. A direção de Todd Phillips foi magistral, e a atuação do Joaquin foi soberba. Eu somente posso bater palmas para esta obra mesmo.

 Outra coisa que é bastante válida de ser ressaltada é a trilha sonora do longa. Hildur Gudnadottir (que eu realmente não conhecia), nos traz a verdadeira identidade do filme através de uma trilha altamente imersiva e profunda. Eu me deparei, em muitos momentos, hipnotizado pela melodia que estava a tocar como pano de fundo na tela, pois todas são extremamente válidas e algumas, eu diria, impactantes. Se puder, ouça a trilha após ver o filme, pois vale muito a pena!


 Mesmo a obra não sendo adaptada de alguma HQ ou jogo, é possível perceber muitas nuances presentes em algumas outras obras existentes, principalmente com a incrível graphic novel 'A Piada Mortal' (do mago das HQs Alan Moore), pois nela temos exatamente a trajetória de um homem de meia idade totalmente amargurado diante da sociedade em que vive, e que diante de alguns acontecimentos transforma-se no sádico Coringa. Mas as semelhanças realmente acabam aí, pois no filme temos o foco total na construção mental do personagem, já na obra de Moore o foco ainda acaba sendo no personagem como vilão mór de Gotham e seu embate com o Batman, apesar da extrema importância que o autor dá ao caráter psicopático e brutal do Coringa e do que ele é realmente capaz.

 Vale a pena buscar outras fontes e ver outros Coringas, claro, principalmente para estar mais por dentro do grandioso universo que existe no que, para mim, é o melhor terreno fictício de uma história em quadrinhos: Gotham City, que, ao lado do próprio Batman, é a protagonista das tramas mais darks da DC, além de abrigar as mentes mais insanas já vistas na ficção, claro.

 Ficarei na torcida para que o Joaquin Phoenix seja pelo menos indicado ao Oscar, e que o filme ganhe tudo que tenha para ganhar (ou seja, tudo!?). Talvez esse seja o início da transformação dos "filmes de herói", no bom sentido, não somente diante das tratativas mais realistas e críticas, mas também na construção de um universo totalmente adulto e que não tem medo de mostra-se. Novamente, bato palmas sem dó para a obra, e que venham mais "filmes de vilão"!

2 comentários:

  1. Perfeito. É possível ver que ao longo dos tropeços enfrentados por Arthur, todo o tempo ele busca por ajuda, não desejando ser um mártir revolucionário ou um vilão, ele só queria ajuda. Ao chegar no ponto que você percebe que ele tá disposto a tudo pois não tem mais nada a perder eu consigo visualizar e enxergar várias pessoas que passam por isso na vida real. Outra coisa interessante é que é mostrado que nem toda pessoa com características sociopata e/ou psicopata nascem assim, mas podem se tornar ao longo da vida e dos traumas enfrentados. Isso foi mostrado de forma de brilhante. E aqui eu falo como alguem que está quase que totalmente por fora do mundo dos super heróis.

    Acho brilhante e super necessarias produções que trazem à tona o debate para a sociedade temas pouco discutidos e que infelizmente são considerados tabus. Só tenho elogios a tecer sobre o filme e sobre essa crítica.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado pelo comentário! E sim, exatamente. A direção do filme foi muito precisa no que diz respeito aos aspectos psicológicos do Arthur e na sua transição tormentosa para o abissal Coringa, e todo o arcabouço mostrado no filme acaba sendo realista ao extremo exatamente pela precisão da direção do Todd, e claro, da perfeita atuação do Joaquin Phoenix. Um filmaço que certamente merece replay.

      Excluir